domingo, julho 10, 2005

Os Donos da Bola

Diário de um Ilhéu Realizado na Vida

«Sou um filho digno desta ilha onde nasci e onde vivo. Alcancei um cargo profissional excelente, bem pago e com boas oportunidades de promoção. Tenho uma bela moradia à beira-mar, dois carros e jipe. Todos os anos tiro férias no estrangeiro e com trinta e poucas primaveras já tenho amigos influentes. Tudo isto porque alcancei o sonho de qualquer jovem ambicioso: um lugar no governo regional. É certo que para ganhá-lo houve alguns senhores que paparam bolos de mel à borla na padaria de meu pai, mas isso não me tira o mérito de ter gramado oito anos lá no contenente tirando o curso de Engenharia de Fiscalização de Ribeiras Estivais.

Meu pai tem orgulho de mim, diz que eu não sou nenhum vilhão, pelo contrário, sou um gajo de categoria, com curso superior e emprego de prestígio. Mas esperto como sou, não fico por aqui. Com os conhecimentos certos no governo regional, saquei uns subsídios e arranjei um negociozito para a minha mulher. Na verdade, ligado como estou à função pública, o negócio tinha que ser mesmo dela. Mas sempre consigo gamar umas horitas do serviço para escapar até à loja. Os vilhões dos meus chefes não ligam nenhuma.

O negócio até vai bem, mas iria melhor se não fosse uma loja de chinocas que se plantou mesmo à frente. Ah mãe! Até aos fins-de-semana trabalham e estão sempre cheios de clientela. Só me faltava agora essa concorrência desleal, depois de tanto me ter esgalgado atrás de subsídios para a loja. Mas eles não perdem pela demora.

Já falei a um amigo meu do governo regional para fazer-lhes a vida negra e persegui-los com multas e inspecções, até que se fartem e desistam. Não é justo concorrer contra preços tão baixos e lojas abertas tantas horas. Ainda bem que conto com o meu amigo para garantir a igualdade. Era o que faltava, eu agora não passear nos shoppings aos fins-de-semana para ter que trabalhar tanto como os chinos!

E é bom que bazem daqui antes que comecem a gerar filharada. Já imaginaram os nossos piquenos e as nossas piquenas a se misturarem com os deles na escola? Ah mãe! Já basta o meu irmão que casou com uma gaja contenental e nos obriga a gramar uma cubana na familhia, ou então a minha prima venezuelana que casou com um preto. Mas o meu irmão sempre foi um paspalho. Anda há anos no contenente a tentar criar uma empresa de tecnologia, quando eu, com as minhas cunhas, podia arranjar-lhe um tacho tão bom por aqui. Recusa as minhas ofertas e diz que prefere ser empreendedor. Para falar com franqueza, nem sei bem o que essa palavra quer dizer, e ainda não houve ninguém por aqui que me soubesse explicar... Bom, assim pelo menos não traz a cubana dele para cá. Quanto à minha prima, está lá longe em Caracas, e está muito bem, que fique por lá com o primo escuro que me arranjou. Agora só faltava era a minha filha me aparecer um dia com um chinês. Ah mãe! Fazia eu morrer mais cedo, de desgosto. Nesta bem ajuizada terra sempre se disse que 'sangue não se mistura'. Já viram como é que eu ficava perante a sociedade, depois do estatuto que já tenho?

O nosso querido presidente já deixou bem claro que essa gente não é cá bem-vinda. Tem razão, pois não queremos concorrência de gente de fora. Cada um na sua terra, assim é que é. É o que diz meu pai, um homem honesto e trabalhador, que durante vinte anos teve uma padaria no Brasil. O meu tio, que retornou há pouco tempo da África do Sul, onde tinha um supermercado, também pensa o mesmo. Por falar nisso, o meu tio da Venezuela não anda lá muito contente, pois uma das lojas dele foi saqueada há poucos dias e ele acha que o governo venezuelano devia proteger mais os negócios dos emigrantes.

Eu gosto do nosso presidente. É verdade que não concordo com tudo o que ele faz, mas o certo é que enquanto ele estiver na frente, as minhas regalias profissionais estão seguras, o negócio da minha mulher está protegido e podemos manter os nossos piquenos no melhor colégio particular da ilha. Ah mãe! Nem quero pensar nos meus ricos filhos misturados com os outros vilhões das escolas oficiais. Por isso, ele pode contar sempre com o meu voto. E é claro, também com o voto da minha mulher, do meu pai, da minha mãe, do meu sogro, da minha sogra, do meu primo que é meu secretário, da mulher que é secretária dele, da família dele, da família dela, e por aí além.

Por aqui se vê que esta ilha é um paraíso na terra, onde há ajuda, amor e carinho. Em nenhum outro lugar do mundo se pode ser mais feliz do que cá, onde ainda por cima o clima é tão fixe e a água é tão quente. Favorecido como sou pelo horário de função pública, mesmo no Inverno saio do trabalho a tempo de mergulhar na praia ou de passear na marina e comer um gelado. E desde que o nosso grande presidente enxotou os estúpidos miúdos que andavam por aí a pedir esmola de caixinha, a cidade ficou ainda melhor. Eu até acho que ele foi bondoso demais. Por mim, devia mandar prendê-los a todos, inclusive à padralhada que defende esses piquenos.

Por isso, sou um homem feliz, na melhor terra do mundo, e só quem for vilhão é que não percebe porquê. »

João Casabranca

(via http://jaquinzinhos.blogspot.com)